Helena Kythera

         "O Vale dos Ventos não é a utopia que eles contam pra vocês aqui na Ilha Flutuante. Podem até inventar histórias de que "não há desiguais", mas boa parte é mentira. Volta e meia vai uma cambada de nobres pra lá, e pra quê? Ver a gente, filhos dessa terra, lutando numa arena clandestina, uma das poucas opções de vida que eu enjxerguei que não trabalhar com dejetos de porco o dia todo, principalmente com uma mãe doente.
         Desde pequena eu fui mais fortinha que as outras crianças, sabe? Elas até pararam de querer disputar lutinha comigo depois de uns anos. Fui trabalhando nos campos quando não estava recebendo alguma educação dos meus pais, já meio velhos pra ficar cuidando o tempo todo dos animais, e essa carga de trabalho piorou quando meu pai morreu devido à idade. Nossos bichos eram cada vez menos procurados, talvez por ter ofertas mais baratas de outras propriedades, e as contas foram apertando, o estresse foi subindo à cabeça de mamãe e de repente eu estava indo ao apotecário pelo menos uma vez ao mês para manter a saúde da minha velha, e isso estava sendo caro.
         Quando comentei com um colega de infância, ele me levou praquele canto afastado da cidade onde os ricos fazem a festa vendo pessoas desesperadas por dinheiro se estapearem. Aceitei de imediato fazer parte daquilo, era necessário. A grana era boa, e toda madrugada dos fins de semana eu estava lá, dançando na areia com outros pobres coitados, perdendo quando precisavam mais, ganhando quando eu deveria. Acho que nunca vi ninguém morrer ali dentro, eu gosto de acreditar que não.
         Consegui sustentar minha mãe por uns dois anos, com a desculpa de que eu estaria caçando para vender animais silvestres para os mercantes, pra dar uma suplementada na nossa renda, mas ela veio a falecer. Nada mais me prendia ali, naquele 'paraíso de iguais' que lentamente tirou o que eu tinha sem nem tentar me amparar. Juntei dinheiro na arena por mais um ano e consegui pagar a inscrição pra cá, quando o navio flutuante passou pelo Vale. E é por isso que eu estou aqui."

         O recepcionista dirigiu um olhar desconfortável para a montanha emocionada e, colocando a mão no formulário de inscrição sobre o balcão, reagiu, com uma voz um tanto receosa:

         "Olha, não quis ofender não, só puxar assunto, ser simpático, pá. Tu já acabou de preencher isso? Hm, hm... Bem-vinda à Academia, e boa sorte aí..."